O processo pode ser doloroso, sofrido, mas a tentativa não pode ser barrada pela rotina e a pressão
Muitas pessoas acham que não são criativas e que a criatividade é algo geneticamente adquirido. Um dom que o sujeito possui (ou não). Para muitos, aliás, falar em criatividade logo desperta associações com a imagem de artistas ou empreendedores famosos. Gente especial que habita o "olimpo criativo", um lugar celestial reservado para pessoas privilegiadas. Se você pensa assim, tenha cuidado! Essa postura é equivocada e pode estar debilitando ainda mais o seu poder criativo.
"Toda criança é um artista. O problema é manter-se artista uma vez
que nos tornamos adultos". Com essas palavras Pablo Picasso nos lembra
que, de alguma forma, nascemos criativos, mas vemos nossa capacidade
minguar diante de anos de repressão e conflitos. Conflitos com o sistema
educacional, com nossos pais e, sobretudo, com um ego cheio de medo e
vergonha.
O positivo, no entanto, é saber que podemos readquirir parte de nossa
criatividade perdida. Mas, para recuperar a criatividade perdida, não
basta despertar a criança dentro de nós. Precisamos estar dispostos a
encarar o verdadeiro trabalho de parto que o nascimento de uma boa ideia
exige. Um trabalho que começa ao estabelecer conexões passando pelos
processos de fecundação, gestação e nascimento. Um processo intenso,
muitas vezes divertido, mas que também pode ser excruciante.
Estabelecendo conexões
A criatividade, assim como o relacionamento entre pessoas, precisa de
interações para poder brotar. Em outras palavras, precisamos nos expor e
buscar sinergias, já que é nas sinergias que encontraremos
matéria-prima para boas ideias. David Birne, líder do grupo Talking
Heads, dá um bom exemplo disso. Segundo ele, muitas conexões criativas
surgem dos seus passeios de bicicleta pela cidade de Nova Iorque. Para
Birne, as cores, sons, cheiros e o contato com as pessoas constituem um
verdadeiro ponto de partida para muitos projetos. Outro exemplo, também
vindo de Nova Iorque, ocorreu com Milton Glaser, famoso designer
gráfico. Ele criou o logotipo mais copiado do mundo, o símbolo "Eu amo
Nova Iorque", dentro de um taxi, enquanto olhava pela janela.
Ou seja, assim com um quebra-cabeças, nossa interação com o mundo
pode disponibilizar as partes, que, juntas, ajudarão a obter algo
coerente. Por isso é recomendável andar "antenados" e adquirir uma
postura ativa diante da avalanche de informações que passa
cotidianamente à sua frente.
O processo de fecundação
Para gerar uma solução inovadora, é preciso, antes de tudo, deixar
que o desafio em questão (ou problema determinado) tenha acesso à nossa
psiquê. E, ao permitirmos acesso a um lugar tão fecundo, estaremos
promovendo um processo de gestação. Processo esse que é nutrido pela
reação do problema ou desafio com nossas experiências, sonhos e
fantasias.
Fantasias como as de Keith Richards, o guitarrista dos Rolling
Stones, que criou a música "I can't get no (satisfaction)" enquanto
dormia. Chapado como sempre, Keith conta que acordou pela manhã no
quarto de seu hotel e reparou que a fita do gravador portátil estava no
final. Curioso, rebobinou a fita e ao apertar o botão play escuto como
ele mesmo pegava a guitarra e tocava os primeiros acordes do que viria a
ser a famosa música. E depois dos acordes… 40 minutos do seu próprio
ronco.
Gestação
A gestação de uma boa ideia exige a participação de ambos os lados de
nosso cérebro. Isso significa a observação e análise sistemática do
lado esquerdo combinado com a sensibilidade inspiradora do lado direito.
Sendo importante lembrar que esse processo, muitas vezes, é também
alimentado por conceitos transversais e diferentes do assunto no qual
estamos trabalhando. Como na criação do slogan “Just do it” para a marca
de artigos esportivos Nike, por exemplo. Neste caso, o marketeiro Dan
Wieden utilizou as últimas palavras de Garry Gilmore, um assassino
condenado à pena de morte momentos antes de ser executado por
fuzilamento em 1976.
O nascimento de uma boa ideia
Assim como numa gravidez, o nascimento de uma ideia pode ser
doloroso. Isso ocorre, especialmente, quando a necessidade de criar
reage de forma negativa com nossa psiquê ou colide com outros problemas
ali existentes. A pressão por resultados, por exemplo, pode dificultar o
parto de ideias ou até diminuir o desejo de seguir trabalhando, como no
caso de Bob Dylan em um dado momento de sua carreira.
Exausto, depois de uma turnê pela Inglaterra, Dylan prometeu ao seu
empresário que deixaria o mundo da música. Disse que já não suportava as
expectativas de todos sobre sua criatividade. Desolado, mudou-se para
uma casa no interior do Estado de Nova Iorque deixando para traz seu
passado e seu violão. O tempo se passou e a solidão, ao invés de calar
sua criatividade, trouxe à tona o texto do que viria a ser uma de suas
canções mais emblemáticas. "Like a Rolling Stone" nasce expondo a dor e a
angústia de ter que criar. Tim Maia também reforça esse argumento com
uma de suas frases célebres: "para fazer boa música é preciso a dor de
trair e de ser traído".
Mas o nascimento de uma boa ideia nem sempre é doloroso. Muitas
ideias nascem como bebês em táxi, ou seja, de forma inusitada. Afinal,
quem já não teve uma boa ideia no chuveiro ou na cama? Arquimedes, o
matemático grego, teve uma de suas melhores ideias dentro de uma
banheira. E de tão animado, saiu pelas ruas, nu, gritando "Eureka,
Eureka!" Tudo isso sem falar nas ideias que surgiram por acidente como a
descoberta da penicilina, do plástico, do Viagra, microondas e as
batatas chips.
Seja como for, o nascimento de uma ideia é um momento especial.
Rápido ou lento, doloroso ou nao, é importante perceber os diferentes
estágios e curtir cada momento sem deixar que a boa ideia escape.
A criatividade constitui uma faceta importantíssima de nosso perfil
e, desde um ponto de vista corporativo, demonstra ser a chave para mudar
as regras do jogo quando o assunto é a sobrevivência no mundo dos
negócios. Empresas como a Samsung, Hyundai, Apple ou a produtora Pixar
deram um bom exemplo ao desbancar concorrentes aparentemente
inabaláveis. Mas o que ocorre na perspetiva corporativa tem sua gênese
no indivíduo. No indivíduo que pensa, que sonha e que, sobretudo, faz
nascer boas ideias.
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